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Flexibilizar a forma de trabalhar é importante?

por Editoria ℓiⱴε
Feb 11th, 2019 » 9 min (Post Digital) (Work)

Na Gig Economy, ganha peso a flexibilidade na forma de trabalhar. Como isso aumenta a inspiração, a satisfação e a criatividade?

O mercado de trabalho tem se alterado bastante nas últimas décadas. Um funcionário de uma grande empresa nos anos 1980 provavelmente dedicaria muitos anos de sua vida para a mesma companhia, bateria cartão no horário comercial e praticamente não teria condições para discutir na empresa outros assuntos que não fossem suas atribuições, seus resultados e sua relação com os colegas de departamento e seus chefes. Propor idéias para outra área seria impensável. Com a revolução digital, muitas mudanças aconteceram nesse ambiente. A tecnologia facilitou processos e permitiu uma maior integração de equipes, inclusive as que atuam em regiões distantes da sede. Com a modernização das estruturas, veio também a modernização da cultura corporativa – e com ela a flexibilidade na forma de trabalhar.

Parte dessas mudanças tem inspiração em algumas práticas adotadas pelas empresas do Vale do Silício. Os ambientes de startups e gigantes tecnológicas instaladas nesse polo, como LinkedIn e Facebook, se tornaram famosos pela liberdade de horário dada aos colaboradores e pela descontração dos escritórios, entre outros fatores. Um googler era olhado com inveja por profissionais de distintos perfis. Afinal, a companhia foi eleita a melhor para se trabalhar seis vezes no ranking global da Fortune (a última deles em 2017).

Além disso, em empresas do Vale do Silício o conceito de colaboração se consolidou, com times sendo estimulados a atuar em conjunto. A criatividade também foi impulsionada por algumas corporações, como o próprio Google, que liberou 20% do tempo de cada funcionário para que ele usasse o período em projetos pessoais. A diversidade ganhou peso, com muitas pessoas vindas de outros países, com outros costumes, crenças e culturas. Iniciativas assim asseguravam um clima mais agradável e inspirador. Desse modo, ficou mais fácil ter empregados satisfeitos em trabalhar na empresa.

Por outro lado, as demandas da sociedade também passaram a “cobrar” das corporações medidas transformadoras. Entre essas necessidades estão a redução do stress ou a diminuição do desgaste provocado com as horas perdidas no trânsito das metrópoles.
Tudo isso acontecendo em um cenário marcado por transformações provocadas por empresas como Uber e Amazon com seu serviço de entregas Flex, em que uma pessoa, usando seu carro e seu celular, pode levar encomendas para os consumidores. Elas apresentam novas modalidades de trabalho, caracterizadas pela curta duração ou por ser uma atividade freelancer. Vivemos no que se chama de Gig Economy – ou também Freelance Economy. Uma das características desse conceito, como o nome aponta, é o trabalho remoto. Não é necessário ter uma cadeira fixa no escritório. Não é necessário cumprir um horário rígido. Desde que o trabalho seja entregue, a companhia entende que o colaborador pode ficar fora da sede por um dia na semana ou até pelo tempo que durar a parceria.

À primeira vista, o formato pode parecer mais adequado às empresas jovens. Mas corporações instaladas há tempos no mercado também estão se adequando a esse cenário. Com 1.500 empregados no Brasil, a Unilever é uma delas e demonstra que flexibilidade e descontração no ambiente de trabalho atendem também a seus interesses.

Em julho, a Unilever mudou de endereço e, em sua nova configuração, definiu que não existem mais lugares permanentes. O funcionário decide onde se instalar porque em qualquer lugar do prédio estará conectado. A única mesa com dono conhecido é a do CEO. Pertences pessoais são guardados em armários e foram montados pontos de encontro nos andares (são nove). Assim, os times podem se reunir ou trabalhar juntos no dia a dia. Existem ainda espaços para café e uma área criada como se fosse um coworking. A proposta foi implementar um ambiente mais colaborativo e mais estimulante para a criatividade (há, inclusive, um fab lab no prédio). Além disso, 100% dos funcionários da Unilever (que completa 90 anos de Brasil em 2019) passaram a ter flexibilidade para trabalhar. Agora todos têm a possibilidade de fazer home office.

Pensamento criativo e mindset de experimentação

Luciana Soares, gerente de marketing da Kibon, está na Unilever há mais de três anos. Antes, tinha trabalhado na Credicard e na Natura. A busca por criar um ambiente mais colaborativo, ela já tinha vivenciado antes. Mas é a primeira vez que pode contar com horários mais flexíveis de trabalho, como o estabelecido agora pela Unilever. “Tento fazer home office pelo menos uma vez por semana. São dias em que preciso organizar materiais, treinamentos e etc. Escapar do trânsito”, diz. Para Luciana, o home office é benefício muito importante. Na forma em que foi montado pela empresa, ela conta com ferramentas que permitem realizar o trabalho de qualquer lugar. “Isso me traz autonomia para entregar o melhor sempre.”

A nova estrutura, segundo Luciana, permite uma integração maior entre os times, com vários espaços para reuniões informais propiciando uma agilidade maior nas atividades do dia a dia. “Acredito que um lugar pensado para o trabalho estimula a criatividade e incentiva os colaboradores. Para reforçar esse conceito, todos os funcionários do escritório têm notebook, incluindo aprendizes e estagiários, para garantir esse ambiente agile sem mesas fixas”, explica. Ela destaca ainda o ambiente 100% cable free (conectividade wireless) e salas de reunião com sistema de videoconferência (“o que nos permite, por exemplo, conexão com as fábricas de maneira rápida e fácil”). Na avaliação de Luciana, as mudanças ajudam a promover novas formas de trabalho e incentivam o pensamento criativo e mindset de experimentação. “Temos espaços físicos que transmitem isso, como a Garagem de Inovação e Studio Gourmet”, exemplifica. Por tudo isso, ela avalia que as novas instalações da empresa promovem espaços de trocas. Além de serem mais informais, eles conectam mais as pessoas, o que garante um ambiente mais colaborativo.

Percepção de mudança

Flexibilizar a forma de trabalhar, com horários menos rígidos ou com a possibilidade de atuar remotamente, é uma das medidas mais discutidas quando se aborda o futuro do trabalho. É uma prática da atualidade, que pode se tornar mais prevalente nos próximos anos. Muitas empresas ainda hoje têm horários fixos e o home office não é um recurso comum na maioria dos países. Pesquisa global da Randstad, companhia especializada em recursos humanos, mostrou que 75% dos brasileiros trabalham em escritório seguindo o tradicional horário comercial. Na Holanda, o índice é de 47%, o menor dentre todos os mercados pesquisados. A média global é 68%. Feito em 34 países, o estudo (Workmonitor – Q1 2018) foi divulgado em março.

O relatório da Randstad revelou ainda que para 45% dos brasileiros o mercado de trabalho está mudando do modelo convencional para o agile (com múltiplas possibilidades de locais para trabalhar e horários diferentes do padrão comercial). O índice global é pouco diferente desse número: 44%. No Reino Unido, essa percepção atinge 50% dos entrevistados.

Ainda que mudanças sejam notadas, não é todo funcionário que adere facilmente às modificações adotadas no ambiente corporativo. No Grupo Pão de Açúcar, a flexibilização do horário foi adotada há cerca de um ano, mas a adesão não é alta, apesar do investimento em comunicação interna. Para estimular os funcionários a aderirem ao modelo, o departamento de RH tem usado mais o home office.
Exatamente para ser vitrine dessa prática.
Há dois formatos de flexibilização oferecidos pelo grupo. Um é o flex office. O outro é o home office. Pelo primeiro, o funcionário pode chegar à empresa no horário que for mais conveniente para ele. O colaborador bate o ponto e cumpre as horas determinadas. Isso pode ser aplicado em um dia em que tenha de ir numa reunião da escola dos filhos ou em dia de rodízio de carro. No caso do home office, o GPA procura oferecer condições mínimas para que o trabalho possa ser executado à distância: notebook, acesso à rede e conexão com a plataforma da companhia.

Modelos de trabalho na Gig Economy

Nestes tempos da Gig Economy, dois tipos de companhias são identificadas pelos especialistas: as que levam pessoas para dentro de suas estruturas e as que não levam pessoas para dentro. É o que explica Ranisson Silva, gerente de negócios da Robert Half, empresa especializada em recrutamento. A primeira remete a corporações que funcionam no regime convencional. A segunda é a que convoca colaboradores para demandas pontuais.

“Há profissionais que atendem essas demandas até de outros países”, diz. Por vezes, são colaboradores que se deslocam por vários lugares, bastando ter um computador e uma conexão para desenvolver seu trabalho. Esse modelo é conhecido por nomadismo digital leia mais a respeito em “Uma experiência real de nomadismo digital”.

Existem casos em que a demanda da empresa requer um perfil específico de profissional, que não precisa ser um funcionário fixo. São trabalhos temporários, com contratos feitos para durar um período ou para cumprir os objetivos do projeto. Exemplos disso são a análise de um problema financeiro pontual e a implantação de um sistema tecnológico que requer um profissional altamente especializado. “É comum que empresas que passaram por uma fusão contratem alguém para cuidar da reestruturação”, acrescenta.

Dependendo da companhia, o contrato temporário pode contemplar alguns dos benefícios oferecidos aos empregados comuns. Assim, um especialista pode começar a trabalhar em uma empresa, tendo acesso às facilidades da corporação (como vale refeição) e a uma estação bem equipada. Não terá as garantias de uma carteira assinada, porém seu horário pode ser diferenciado.

Contar com nômades digitais, freelancers em projetos ou estabelecer contratos temporários podem ser medidas que estejam distantes da realidade cotidiana de algumas companhias. Porém há outras transformações em curso que atingem até empresas que seguem com modelos mais convencionais de trabalho. São mudanças também de acordo com as características da Gig Economy. Entre elas estão a adequação dos ambientes para torná-los mais leves e o incremento do pacote de benefícios (caso da oferta de serviços de academia e de programas de atividade física). São iniciativas que melhoram a sensação de bem-estar do colaborador, o que impacta diretamente na produtividade.
Esse efeito está sendo medido por pesquisas. No estudo da Randstad sobre o trabalho no horário comercial (mencionado acima), 82% dos entrevistados disseram que um modelo mais flexível permite que eles tenham um bom equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal. E 81% afirmaram que a flexibilidade melhorou a produtividade, a criatividade e a satisfação com o trabalho.

Outra pesquisa global da Randstad (Employer Brand), também deste ano, investigou fatores que levam as pessoas a permanecer em um emprego. Entre os brasileiros, os resultados revelam que 41% das mulheres são mais propensas a ficar na atual empresa em razão do ambiente interno agradável (para os homens, o item que mais prevalece, com 39% das respostas, é a estabilidade). Entre os profissionais com grau de escolaridade superior, 36% têm maior probabilidade de ficar com seu empregador caso ele ofereça condições flexíveis de trabalho.
As corporações têm percebido que é fundamental, de fato, investir em estratégias que mantenham o funcionário satisfeito. Se o home office ainda não se propagou por aqui, a flexibilidade de horário já se tornou mais comum. Na avaliação de Ranisson Silva, a grande maioria das empresas está aplicando o conceito. Nas companhias que aderiram a essa ideia, o horário de trabalho é mais dilatado. Desse modo, o funcionário pode sair antes ou chegar mais tarde, em função de compromissos pessoais. “Ele faz compensação com banco de horas”, diz o analista da Robert Half.

Sinuca que não é só sinuca

Embora não seja recorrente, mais lugares estão adotando o que Silva chama de “cool spaces”. São espaços que funcionam como área de descompressão. Como os que têm uma mesa de sinuca ou de pingue-pongue. Investir nisso vai além de oferecer momentos de diversão. É oportunidade de integração. “Quem está jogando sinuca, também pode estar discutindo projeto. Ali, o cara de finanças pode encontrar o de marketing e estabelecerem uma convivência diferente e isso ajudar o trabalho a ser mais produtivo”, explica Silva.

Por tudo isso, ele considera importante flexibilizar as formas de trabalho, o que implica em ter horários mais maleáveis e ter maneiras de tornar o ambiente mais agradável para os olhos e para o corpo. “Pensando na modernidade líquida em que vivemos, como estabelecido por Zygmunt Bauman [o líquido sofre constantes mudanças], digo que adaptação é o que as empresas buscam. Nesse sentido, flexibilizar o trabalho é a tônica do mercado hoje”, reforça Silva. Segundo ele, empresas mais inflexíveis se arriscam mais a perder colaboradores. “Quem trabalha em companhias com clima laboral mais descontraído e que são mais flexíveis não quer sair do emprego. Se o funcionário sente que tem mais possibilidades de saída, ele percebe que a empresa o apoia. Se ele está feliz, é mais produtivo. E felicidade dá dinheiro”, completa.

Do chão de fábrica ao home office. Quem se beneficia com a evolução da cultura corporativa?

Coordenador do Laboratório de Produtividade da ESPM, o professor Roberto Camanho cataloga, junto com seus alunos, diversos problemas de gestão que se repetem nas empresas e que impactam na produtividade. São questões relativas a processos, planejamento, capacitação, comunicação. A unidade, criada há dois anos, está coletando material para montar um relatório identificando esses problemas. Engenheiro mecânico de formação e com familiaridade com o pessoal do chão de fábrica, Camanho tem um olhar especializado no tema produtividade. E, com isso, faz uma viagem no tempo para analisar a evolução das relações de trabalho.

“O ambiente convencional de trabalho atual veio muito dos anos 1980. Empresas de consultoria levaram da fábrica para as empresas a visão industrial de produtividade, que é fazer mais por menos. Quando esse conceito saiu da fábrica para o escritório, criou-se a ilusão de que tendo os processos documentados, a empresa teria como pautar o volume de produção”, conta Camanho.
O “detalhe” é que a máquina da fábrica, uma vez regulada, pode fazer a mesma coisa por muito tempo. A modelagem de processos implantada pelas consultorias nos escritórios foi uma tentativa de criar ritmo e homogeneidade nas companhias. No entanto, “esqueceu-se” que as relações humanas não são pautadas como se nós fôssemos máquinas.

De lá para cá, o que se observa hoje nas corporações? “Processos continuam valendo onde tem rotina. Onde não há rotina, não adianta tentar inventar uma. Havia essa ilusão no passado de que tudo era rotina, tudo se baseava em processos. Mas se um processo não faz sentido na cabeça de um funcionário, ele não será usado. Será abandonado”.

Por que, então, mantê-lo? Em alguns casos, porque existe rotina. Quem trabalha em operações rotineiras talvez não se adapte a um modelo com horários mais flexíveis ou com a adoção do home office. Camanho comenta que algumas empresas procuram estabelecer a regra de o funcionário trabalhar um dia da semana em casa – medida que também ajuda a reduzir custos operacionais.

Não serão todos os colaboradores, porém, que ficarão felizes com isso. “Atividades como preenchimento de documentos para o governo e pagamento de bancos são rotineiras. Elas exigem planejamento, processo e execução”, explica.

Também é preciso entender o perfil do indivíduo para saber se ele será bem sucedido com o home office. Segundo Camanho, é preciso lembrar que o ser humano é... humano. Por isso, ele sublinha que um profissional não é igual a outro. “Na vida profissional em que não há mais regrinhas a seguir, deve-se entender qual é o perfil da pessoa, qual é a pegada daquele funcionário”.

O professor da ESPM defende que há quem tenha uma maneira mais definida de viver. Se fosse organizar um jantar, teria horário de início e término e não gostaria de ser surpreendido com um convidado inesperado. Há outros para os quais se pergunta a hora do jantar e estes respondem: “lá pelas 20h”.

A analogia serve para mostrar que o líder de uma equipe deve entender os diferentes perfis de cada colaborador para compreender que certos profissionais não vão se sentir bem se o trabalho for muito flexibilizado. “É capaz de ele se perder ao fazer home office”.

Em virtude disso, Camanho sugere que as empresas preparem seus funcionários para as possibilidades do trabalho em casa. E que também treinem os líderes para que eles possam identificar que profissionais podem se adaptar melhor aos novos tempos e para que eles mesmo estejam preparados para os modelos mais flexíveis. “Se o chefe estiver acostumado a cobranças contínuas, ele poderá se comportar como um feitor porque não vê o funcionário. E se ele disser que não poderá fazer uma entrega no prazo previsto? O chefe ficará ainda mais impaciente e desconfiado. Como não pode vê-lo em sua mesa, terá a sensação de que o trabalho não foi bem feito. Por outro lado, se o chefe obrigar o funcionário a ligar para ele de duas em duas horas, isso não será produtivo”.

Esses quadros ilustram como é essencial que o discurso moderno das relações de trabalho esteja totalmente sintonizado com a prática. Caso contrário, restará à empresa apenas a aparência de ser um ambiente moderno. E seus funcionários não estarão 100% satisfeitos.

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